Quarteto consolida trabalho que mistura elementos sonoros e celebra presença feminina: ‘ter uma banda só com mulheres é a melhor coisa que podia acontecer’
Pegue uma pitada de shoegaze e acrescente uma colher de dream pop. A seguir, adicione um chá de punk e misture tudo com um tempero indie. Está pronta a receita do Fin del Mundo, com a poesia da Patagônia e o romanticismo de Buenos Aires. A banda argentina lançou o segundo álbum de estúdio, Hicimos Crecer un Bosque, no último dia 18 e estreou a nova turnê – com previsão de passagem pelo Brasil – no Chile na última sexta-feira. Depois do sucesso do primeiro disco, Todo Va Hacia el Mar, lançado em 2023, o segundo LP aumenta a intensidade e força sonora que marcaram o grupo. Em entrevista exclusiva à Jovem Pan News, a vocalista e guitarrista Lucía Masnatta refletiu sobre as novas músicas e ressaltou a agressividade. “É como se tivéssemos aberto mais o espectro e feito tudo que gostamos de escutar, tem um pouco de cada uma de nós. Estamos mais afiadas em nossos papéis”, disse.
Masnatta é apenas um quarto da banda que vem se destacando cada vez mais no cenário latino-americano. Ao lado dela, estão a também guitarrista Julieta “Hache” Heredia, a baixista Yanina Silva e a baterista Julieta “Tita” Limia. Juntas, elas são responsáveis por um dos sons mais interessantes feitos no continente desde o começo da década, quando lançaram o primeiro EP homônimo. Talvez você ainda não as tenha escutado por aí, o que é compreensível. Quase sem ter faixas abaixo dos três minutos de duração, a música do Fin del Mundo não é feita para ser um grande sucesso nas rádios ou ocupar o topo dos charts, o que está longe de ser um problema. “Nós pensamos nas canções como uma ideia que se leva à expressão máxima, não em um formato pré-definido. Nunca nos guiamos pelos parâmetros que a indústria quer e é lindo que as pessoas do outro lado pensem que isso está bom para ser ouvido”, diz Lucía.
A fusão de estilos, amparada pelo uso de elementos como os pedais com reverb e delay, traz uma originalidade ímpar ao trabalho das argentinas. Feche os olhos ao escutar o som e você logo se imaginará em meio às livres e vastas paisagens patagônicas da Terra do Fogo e de Chubut, no extremo sul do continente. Tudo isso é proposital, em um “resgate às origens” proposto para contrastar com o imediatismo do mundo digital. Mas caso você ainda não as tenha escutado, vale começar por onde boa parte do público também começou: a sessão ao vivo gravada para a rádio KEXP de Seattle, nos Estados Unidos. A apresentação de cerca de meia hora no Centro Cultural Kirchner, em Buenos Aires, já soma mais de 1,5 milhão de visualizações e foi a porta de entrada para que a banda passasse a ganhar o mundo a partir de 2022.
De lá para cá, os seguidores só têm crescido. Recentemente, as Fin del Mundo passaram por uma turnê na Europa, mas também vieram ao Brasil em duas ocasiões. A primeira, em março, contou com cinco datas. Dois shows foram em São Paulo – um no SESC Paulista e outro no Bar Alto – um em Brasília, um em Goiânia e outro em São José dos Campos, no interior paulista. A experiência foi boa e, em setembro, elas já estavam de volta se apresentando no festival SeRasgum, em Belém, e mais uma vez na capital paulista, no SESC Belenzinho, com público consideravelmente maior. “Foi um espaço de tempo muito curto entre uma ida ao Brasil e outra”, conta Lucía. “No SESC Belezinho, vendemos todos os ingressos. Eu mal conseguia olhar para a plateia, mas não é vergonha. Te dá um pouco de nervosismo porque temos uma responsabilidade, já que as pessoas estão aguardando uma experiência”.
O nervosismo, porém, evapora completamente quando os shows começam e se transformam em uma sessão de viagem musical, entregando a tal da experiência aguardada pelos ouvintes. No Pará, a sensação foi ainda melhor. “Foi lindo, nos surpreendeu muito. O festival era uma coisa divina, tinha muitos estilos diferentes, pudemos conversar com o DIIV [banda de rock americana], que somos muito fãs, e as pessoas estavam muito ligadas na nossa música. O público estava enlouquecido, cantando tudo e nos apoiando muito”, relata a guitarrista. A relação com o Brasil pode não ser sentida nos discos do Fin del Mundo, mas certamente está inclusa no cotidiano das quatro integrantes. Para chegar ao trabalho atual, nomes importantes da música nacional como Ratos de Porão e Caetano Veloso estão na trajetória que as trouxeram até aqui.
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Um retorno aos palcos locais está previsto para o ano que vem, com expectativa de passar por cidades novas no roteiro e conhecer mais a fundo o país. Assim, os brasileiros terão a oportunidade não apenas de conhecer mais de um dos novos expoentes da música argentina, mas também de estar em contato com algo que, infelizmente, ainda é raro na música internacional, sobretudo no rock: uma banda formada apenas por mulheres. “Como é tocar em uma banda só com mulheres? É a melhor coisa que pode acontecer na vida!”, brinca Masnatta. “Eu sempre quis um grupo feminino e fui fracassando sempre que tentava. É muito difícil encontrar pessoas da sua idade que queiram seguir este caminho neste momento da vida, que tenham tempo e vontade para isso. Este encontro entre nós quatro é uma benção e sou muito grata por isso. Há uma energia quando tocamos juntas, quando viajamos… nós nos entendemos muito”.
Lucía também celebra que a participação feminina tenha crescido entre os grupos musicais argentinos. “O raro hoje em dia é ter uma banda só de homens. E também é um pouco chato, porque é o que vemos desde sempre. Fica uma sensação de ‘ah, sim, quatro marmanjos tocando… eles tocam bem, legal’. Depois de tantos tempos silenciadas nestes circuitos, as mulheres têm coisas para dizer nos palcos”, comemora. É de se notar que as Fin del Mundo não surgem de um vácuo musical. O cenário indie argentino tem se fortalecido nos últimos anos com bandas cada vez mais destacadas, mesmo distantes do mainstream. O principal farol segue sendo o Él Mató A Un Polícia Motorizado, que já passou algumas vezes pelo Brasil, mas outros nomes como a possivelmente falecida Las Ligas Menores, Bandalos Chinos e Conociendo Rusia também têm galgado espaço e conquistado fãs.
Mas apesar de estarem em alta, os grupos latino-americanos ainda encontram certa dificuldade para achar espaço dentro do mercado brasileiro. Mesmo com qualidade estabelecida e perfil bem definido, as bandas costumam estar ausentes dos lineups dos principais festivais do país. Lamentavelmente, uma oportunidade perdida para o público nacional em larga escala – que, por sua vez, acaba sendo vítima de uma overdose de artistas anglófonos. Lucía, porém, não se põe a lamentar. “Creio que vocês já têm muita música boa. O Brasil tem uma cultura musical antiga, então não sei se toda música que vem de fora pode atingir o público daí, porque já há um nível bastante elevado. Uma banda que tem apenas letras em espanhol dificilmente vai conquistar um público brasileiro muito grande, mas algumas de nossas canções têm poucas letras e componentes que chamem a atenção das pessoas”, explica.
O BOSQUE ESTÁ CRESCENDO
Mais visceral que o disco de estreia, Hicimos Crecer un Bosque transporta os ouvintes dentro dos seus próprios sentidos. São oito faixas ao longo de pouco mais de meia hora de duração, começando com a estrondosa Una Temporada en el Invierno, um dos dois singles do álbum. As outras duas – Vivimos Lejos, lançada em julho, e El Día de las Flores, no fim de setembro – não ficam por menos. Mas é em Devenir Paisaje, a quinta música do disco, que toda a qualidade do trabalho se põe à prova. A faixa é majoritariamente instrumental, a ponto de quase ser possível contar as palavras com os dedos: são 32 no total. Ali, fica explícita toda a criatividade e intensidade do quarteto, já capazes de dominar o minimalismo lírico. Não por acaso, a canção foi escolhida como uma das favoritas no álbum por Lucía Masnatta – ao menos por enquanto.
As letras, inclusive, parecem vir de um lugar tão mágico quanto os acordes, sempre puramente genuínas. “Eu não penso em fazer uma canção que fale sobre algo específico. É algo que a melodia vai nos levando de alguma maneira. Extraio da própria música e do que está acontecendo comigo, das coisas que vejo no mundo”, explica a cantora. A discussão sobre se o fim do mundo está próximo ou não está sempre presente na sociedade. Mas no meio musical, o futuro do Fin del Mundo parece brilhante, com um trabalho cada vez mais consolidado e capaz de atingir um público maior. A expectativa fica para que os próximos anos incluam ainda mais passagens pelo Brasil.