Com sua origem fincada nos trovadores da Europa na Idade Média, as primeiras “novelas” — na verdade, longos relatos em forma de poesia — narravam as aventuras de cavaleiros em meio a duelos contra rivais e monstros por justiça, tudo entremeado com muito romance. No século XVIII, os chamados melodramas passaram a designar espetáculos que fugiam das regras clássicas e se valiam da música para introduzir os personagens no palco. Por aqui, o gênero ganhou força junto com a TV, a partir de 1950, explodiu nos anos 1970 e permanece no ar até hoje, com poucas modificações. Referência máxima mundo afora de excelência e conexão com o público, as telenovelas brasileiras, por décadas, se misturaram com o cotidiano do país — boa parte da população criou o hábito de se plantar à noite diante da televisão para assistir ao desenrolar das tramas. Isso ainda acontece, sobretudo no interior e entre os mais velhos, e a relevância do Brasil no setor segue incontestável. Mas uma coisa é certa: o povo noveleiro não é mais aquele.
Prova disso é a audiência pífia de Mania de Você, a atual novela das 9 da TV Globo, que amarga os piores índices do horário nobre da emissora na última década. O fenômeno tem razões variadas, afirmam especialistas, e um dos principais é a concorrência. Novelas reinavam sozinhas ditando o jeito de se vestir (no fim dos anos 1970, nenhuma menina ou mulher escapou das meias de lurex usadas por Sonia Braga em Dancin’ Days), falar (até hoje se repete “nos trinques”, expressão de Paulo Betti em Tieta, de 1989/1990) e ouvir música (trilhas sonoras eram degraus para o primeiro lugar nas paradas).
Agora, elas têm que disputar espaço com novas e acessíveis fontes de entretenimento. “A audiência se pulverizou. O streaming e as redes sociais embaralharam o jogo”, observa Mauro Alencar, consultor em teledramaturgia e integrante do corpo de jurados do Emmy. A fuga dos noveleiros do principal produto da indústria televisiva, aliás, está embutida na queda generalizada da audiência das TVs abertas. “A comunicação de massa era para todos. Mas com a internet e a globalização, tudo ficou mais segmentado”, destaca Maria Immacolata Lopes, coordenadora do Centro de Estudos de Telenovela da USP.
Dados recentes confirmam que, embora o ibope dos canais abertos no país como um todo ainda seja predominante, seu lugar de honra nos lares brasileiros vem se apagando. Levantamento do Datafolha/Fundação Itaú publicado em novembro coloca pela primeira vez as plataformas digitais no topo do ranking de público: entre 23 atividades listadas, 73% declararam preferir assistir a filmes em plataformas on-line, ficando as novelas com 56% das escolhas — um índice de fãs ainda impressionante, mesmo tendo perdido a unanimidade do passado.
Enquanto a indústria é chacoalhada pelo avanço dos novos meios de consumir entretenimento, a baixa audiência de Mania de Você joga luz sobre um outro fator crucial: o público mudou e a novela não está sabendo acompanhar (veja gráfico). O folhetim de João Emanuel Carneiro registra menos de 22 pontos, em média, a pior audiência das últimas doze tramas das 9 — nos tempos áureos, chegava a bater em 75 pontos. Os problemas do roteiro são tão gritantes que o próprio público fez um abaixo-assinado virtual pedindo para que se matasse Rudá, personagem de Nicolas Prattes, visto como insosso e sem sentido. A narrativa é considerada confusa e pesada, com muitas mortes (menos a do infeliz Rudá) e protagonistas em excesso que ora são vilões, ora são bonzinhos, o que quebra a lógica dos arquétipos bem definidos a que o público fiel está acostumado. Outra crítica é a “juniorização” do elenco, consequência da política da dispensa das pratas da casa e contratação por obra. “Na hora da escalação, muitos nomes consagrados já estão comprometidos com outras produções. Antes se tinha uma novela cheia de rostos conhecidos e apostas pontuais. Essa lógica se inverteu”, ressalta Tatiana Siciliano, especialista em televisão da PUC-Rio. Mania de Você tem duas estrelas — Adriana Esteves e Mariana Ximenes — e dezenas de nomes menos conhecidos e menos iluminados.
Enquanto a Globo trilha um caminho de mudanças, necessário, porém arriscado, novelões de origem turca e coreana seguem populares — até o Globoplay se rendeu às produções made in Turquia, melodramas clássicos e de fácil empatia que estão ultrapassando produções nacionais no canal de streaming. “O reconhecimento dessas tramas estrangeiras está atrelado à adesão popular e à repercussão positiva nas redes. As brasileiras deixam a desejar nos dois itens”, avalia Aurora Leão, da UFJF. Outra falha das novelas nacionais atuais, segundo estudiosos do tema, são as tentativas canhestras de adaptar o formato tradicional ao modelo que dá certo no streaming. Tomando-se novamente o exemplo de Mania de Você, a história tem passado por cortes abruptos, pouco antes de ir ao ar, para dar mais ritmo. Ninguém gostou — remover a repetição da narrativa, característica intrínseca ao gênero, só faz com que o espectador perca o fio da meada.
A presença da cultura woke em toda e qualquer trama é mais um espinho na garganta do espectador, que anda cansado dos exageros da correção política. Tornou-se recorrente nas produções da Globo a inserção de temas como racismo, homofobia e violência contra mulheres. “Parece que virou lei para os autores. É importante que se fale desses assuntos, mas não podem se sobrepor ao próprio folhetim”, pondera Nilson Xavier, autor do Almanaque da Telenovela Brasileira. Tem mais: por questões industriais, a Globo está pondo no ar novelas com uma frente enorme de capítulos gravados. Se algo desanda, como está acontecendo no folhetim das 9, não há como fazer ajustes para atender às demandas do público.
Mais sucesso vem tendo outra marca da atual obra de João Emanuel baseada na fórmula das novelas de sucesso do streaming, como Todas as Flores, do mesmo autor, e Pedaço de Mim, de Angela Chaves: ter menos núcleos e atores do que os novelões, um requisito na vida acelerada da maioria das pessoas hoje em dia. “Eu também venho diminuindo o número de artistas a cada produção. As novelas são uma crônica do seu tempo e precisam se adaptar ao ritmo de vida do momento”, defende a novelista Gloria Perez. Adequação é, de fato, a alma do negócio — as narrativas água com açúcar do início deram lugar a roteiros mais realistas, que aos poucos incorporaram um DNA brasileiríssimo, como Tieta (1989/1990), ou hiper-realistas, a exemplo de Vale Tudo (1988), que, embalada pela onda dos remakes, terá uma nova versão em 2025. Cogita-se, inclusive, antecipar sua estreia, marcada para março, caso Mania de Você não saia da UTI. “Não existe uma receita de bolo, mas observo que as novelas que conseguem refletir o espírito da sociedade naquele momento dialogam e conquistam o público”, analisa a autora Rosane Svartman.
A última novela de sucesso estrondoso da Globo, há distantes doze anos, foi Avenida Brasil, coincidentemente do próprio João Emanuel — o país literalmente parou para acompanhar a trama protagonizada por Carminha (Adriana Esteves) e Tufão (Murilo Benício). Comenta-se, aliás, que o autor está decidido a não renovar seu contrato com a emissora, em mais uma mostra do metadramalhão no setor. Diretor da TV Globo, Amauri Soares garante, convicto, que as novelas da emissora seguem relevantes na vida do brasileiro. “A das 9 fala com 65 milhões de espectadores por semana. Atualmente, a audiência domiciliar do horário nobre da TV Globo é 65% maior que todos os streamings e outros consumos de vídeo na TV somados”, diz o executivo.
Para conhecedores do assunto, os folhetins passam, na verdade, por um momento de ajuste. “Vivemos uma nova fase de experimentação, com as tramas se adaptando à dinâmica do streaming e, ao mesmo tempo, tentando não perder a essência melodramática”, avalia Tatiana Siciliano, da PUC-Rio. Se emissoras, autores e atores acertarem a mão, o hábito de ver novelas deve seguir presente nos lares brasileiros ainda por muito tempo.
Publicado em VEJA de 13 de dezembro de 2024, edição nº 2923